Há muitas
pessoas que sofrem do mal da solidão. Basta que em redor delas se arme
silêncio, que não se manifeste aos seus olhos nenhuma presença humana, para que
delas se apodere imensa angústia: como se o peso do céu desabasse sobre a sua cabeça,
como se dos horizontes se levantasse o anúncio do fim do mundo.
No entanto,
haverá na terra verdadeira solidão? Não estamos cercados por inúmeros objetos,
por infinitas formas da Natureza e o nosso mundo particular não está cheio de
lembranças, de sonhos, de raciocínios, de idéias, que impedem uma tal solidão?
Tudo é vivo e
tudo fala, em redor de nós, embora com vida e voz que não são humanas, mas que
podemos aprender e escutar, porque muitas vezes essa linguagem secreta ajuda a
esclarecer o nosso próprio mistério. Como aquele Sultão Mamude, que entendia a
fala dos pássaros, podemos aplicar toda a nossa sensibilidade a esse aparente
vazio de solidão: e pouco a pouco nos sentiremos enriquecidos.
Pintores e
fotógrafos andam em volta dos objetos à procura de ângulos, jogos de luz,
eloquência de formas, para revelarem aquilo que lhes parece não só o mais
estético dos seus aspectos, mas também o mais comunicável, o mais rico em
sugestões, o mais capaz de transmitir aquilo que excede os limites físicos desses
objetos, construindo, de certo modo, seu espírito e sua alma.
Façamo-nos
também desse modo videntes: olhemos devagar para a cor das paredes, o desenho
das cadeiras, a transparência das vidraças, os dóceis panos tecidos sem maiores
pretensões. Não procuremos neles a beleza que arrebata logo o olhar, o
equilíbrio das linhas, a graça das proporções: muitas vezes seu aspecto – como o das criaturas humanas –
é inábil e desajeitado. Mas não é isso que procuramos, apenas: é o seu sentido
íntimo que tentamos discernir. Amemos nessas humildes coisas a carga de
experiências que representam, e a repercussão, nelas sensível, de tanto
trabalho humano, por infindáveis séculos.
Amemos o que
sentimos de nós mesmos, nessas variadas coisas, já que, por egoístas que somos,
não sabemos amar senão aquilo em que nos encontramos. Amemos o antigo
encantamento dos nossos olhos infantis, quando começavam a descobrir o mundo:
as nervuras das madeiras, com seus caminhos de bosques e ondas e horizontes; o
desenho dos azulejos; o esmalte das louças; os tranqüilos, metódicos telados...
Amemos o rumor da água que corre, os sons das máquinas, a inquieta voz dos
animais que desejaríamos traduzir.
Tudo palpita
ao redor de nós, e é como um dever de amor aplicarmos o ouvido, a vista, o
coração a essa infinidade de formas naturais ou artificiais que encerram seu segredo,
suas memórias, suas silenciosas experiências. A rosa que se despede de si mesma,
o espelho onde pousa o nosso rosto, a fronha por onde se desenham os sonhos de
quem dorme, tudo, tudo é um mundo com passado, presente, futuro, pelo qual
transitamos atentos ou distraídos. Mundo delicado, que não se impõe com
violência: que aceita a nossa frivolidade ou o nosso respeito; que espera que o
descubramos, sem nos anunciar nem pretender prevalecer; que pode ficar para
sempre ignorado, sem que por isso deixe de existir: que não faz da sua presença
um anúncio exigente. “Estou aqui! Estou aqui!”. Mas, concentrado em sua
essência, só se revela quando os nossos sentidos estão aptos para descobrirem.
E que em silêncio nos oferece sua múltipla companhia, generosa e sensível.
Oh! Se vos
queixais de solidão humana, prestai atenção, em redor de vós a essa prestigiosa
presença, a essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que conversará
convosco interminavelmente.
Cecília Meirelles
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